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2 de março de 2011

Pedaços

Umbigo do Brasil, cravado no
Centro da barriga da miséria,
Vamo comer, vamo comer poesia”



“Animal arisco” – eu caminhava pela rua quando ouvi o grito. No meio do barulho, do torpor desse calor viscoso que andou fazendo. Claro, agudo, relâmpago no meio da tarde, aquele gemido. Parei, sem entender. O grito foi sendo levado para longe – “me senti sozinho/ tropeçando em meu caminho/ à procura de ajuda, um lugar, um amigo” – enquanto eu compreendia. Era Caetano Veloso cantando Fera Ferida, de Roberto e Erasmo Carlos, provavelmente num rádio de carro que se afastava.

O gemido rasgou a tarde em duas. Fiquei ali parado no meio da dor, assim (deus, quem disse isso uma vez?) “ferido de mortal beleza”. Provavelmente com aquela “expressão amarga” – como diz o Osmar Freitas Jr. – “de quem tivesse acabado de chupar (?) uma crônica de Caio Fernando de Abreu”. Olhei em volta: ninguém mais tinha ouvido. Estavam todos com uma expressão de… – bom, deixa pra lá. Não consigo entender essa pressa em rotular, carimbar, colocar em prateleira: é assim, doce, amargo, leve, pesado. Idéias feitas, congeladas, mortas. Safári no cemitério, preconceito. Fiquei ali parado, o grito vivo de Caetano na cabeça.

Então pensei: Caetano não dá mais entrevista. Tá certo. Não há nada a dizer, não há nada para explicar. Ou você entende, através da música e até do silêncio, e estamos conversados e enriquecidos. Ou você não entende nada, porque seu repertório é outro. Então, numa gestalt, também estamos conversados. Ninguém enche o saco de ninguém, você me deixa em paz, eu te deixo em paz – certo? Fica combinado assim: se não te atrapalho, você me dá licença de ser assim do jeito que sou?

Fui pra casa ouvir mais Caetano. Deitei, aquele calor paulistano, de cimento. Peguei o release de Maria Clara Jorge – ela diz “Caetano é o umbigo do Brasil”. Sim, em vários sentidos. Aí li o que diz Renato Costa, coordenador do departamento internacional da Polygram: “Há anos Caetano dá todos os toques sem cobrar nada e o Brasil não saca. Azar do Brasil”. Azarésimo. E azar o seu, se não ouvir.

Pega o disco, tá tudo lá. O Brasil negro, já na foto (linda de Flávio Colker (sobre concepção de Luiz Zerbini) na capa, no candomblé que passeia seus axés por Depois Que o Ilê Passar e Ia Omim Bum, ou em Eu Sou Neguinha? Tá lá o discurso político em Vamo Comer: “Quem vai equacionar as pressões/ do PT, da UDR/ e fazer dessa vergonha uma nação?” Tem o cinema falado de Giulietta Massina – “ah, minha vida sozinha/ ah, tela de uma outra luz” -, tem a solidão das estradas em Noite de Hotel: “Estou a zero, sempre o grande otário”. E aquela que deve ser uma das mais belas letras (e músicas) feitas nos últimos anos neste país, O Ciúme. Numa tarde cheia de luz, no rio São Francisco, sobre toda a paisagem “paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. O humano torturado projeta sua imagem interior sobre a paisagem indiferente, alheia à dor individual. Mas de dentro dessa tortura, que nada alivia e ninguém pode perceber, é que o ser olha e suspeita: “Tudo é perda, tudo quer buscar – cadê?”

Porque tem luz e sombra. Uma engendra a outra, uma nasce de dentro da outra. Tem amor e ódio, tem encontro e perda, tem identificação e indiferença. Tem dias em que tudo se encaixa, como no momento das peças finais dos quebra-cabeças, e tem aqueles em que tudo se desencaixa numa aflição tonta de não haver sentido nem paz, amor, futuro ou coisa alguma. Tem dias que nenhum beijo mata a fome enorme de outra coisa que seria mais (e sempre menos) que um beijo. Mas tem aqueles outros, quando um vento súbito e simples entrando pela janela aberta do carro para bater nos teus cabelos parece melhor que o mais demorado e sincero dos beijos. Precisamos dos beijos, precisamos dos ventos. Tem dias de abençoar, dias de amaldiçoar. E cada um é tantos dentro do um só que vê e adjetiva o de fora que escapa, tão completamente só no seu jeito intransferível de ver: “E eu sou só eu só eu só eu”.

A voz e a poesia de Caetano passeiam nesse limiar – Limiar é tão bonito, parece limite, parece ar, um limite no ar? – entre os opostos. Umbigo do Brasil, como diz Maria Clara. Cravado no centro, origem, raiz, verdade. Vamo comer, vamo comer Caetano: bom apetite.



Caio Fernando Abreu – O Estado de São Paulo, caderno 2, 1987

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“Não sinto nada mais ou menos, ou eu gosto ou não gosto. Não sei sentir em doses homeopáticas. Preciso e gosto de intensidade, mesmo que ela seja ilusória e se não for assim, prefiro que não seja. Não me apetece viver histórias medíocres, paixões não correspondidas e pessoas água com açúcar. Não sei brincar e ser café com leite. Só quero na minha vida gente que transpire adrenalina de alguma forma, que tenha coragem suficiente pra me dizer o que sente antes, durante e depois ou que invente boas estórias caso não possa vivê-las. Porque eu acho sempre muitas coisas - porque tenho uma mente fértil e delirante - e porque posso achar errado - e ter que me desculpar - e detesto pedir desculpas embora o faça sem dificuldade se me provarem que eu estraguei tudo achando o que não devia. Quero grandes histórias e estórias; quero o amor e o ódio; quero o mais, o demais ou o nada. Não me importa o que é de verdade ou o que é mentira, mas tem que me convencer, extrair o máximo do meu prazer e me fazer crêr que é para sempre quando eu digo convicto que nada é para sempre." (Gabriel García Márquez)

Definição

"Me mande mentalmente coisas boas. Estou tendo uns dias difíceis, mas nada, nada de grave. Dias escuros sem sorrisos, sem risadas de verdade. Dias tristes, vontade de fazer nada, só dormir. Dormir porque o mundo dos sonhos é melhor, porque meus desejos valem de algo, dormir porque não há tormentos enquanto sonho, e eu posso tornar tudo realidade. Quando acordo, vejo que meus sonhos não passam disso, sonhos; e é assim que cada dia começa: desejando que não tivesse começado, desejando viver no mundo dos sonhos, ou transformar meu mundo real num lugar que eu possa viver, não sobreviver."
(CFA)

Pausado

Pausado
"Tô feliz, to despreocupado, com a vida eu to de bem"

Quem sigo

Um Pouco

"Mas como menina-teimosa que sou, ainda insisto em desentortar os caminhos. Em construir castelos sem pensar nos ventos. Em buscar verdades enquanto elas tentam fugir de mim. A manter meu buquê de sorrisos no rosto, sem perder a vontade de antes. Porque aprendi, que a vida, apesar de bruta, é meio mágica. Dá sempre pra tirar um coelho da cartola. E lá vou eu, nas minhas tentativas, às vezes meio cegas, às vezes meio burras, tentar acertar os passos. Sem me preocupar se a próxima etapa será o tombo ou o voo. Eu sei que vou. Insisto na caminhada. O que não dá é pra ficar parado. Se amanhã o que eu sonhei não for bem aquilo, eu tiro um arco-íris da cartola. E refaço. Colo. Pinto e bordo. Porque a força de dentro é maior. Maior que todo mal que existe no mundo. Maior que todos os ventos contrários. É maior porque é do bem. E nisso, sim, acredito até o fim.” (Caio Fernando Abreu)