“Há anos Caetano dá todos os toques sem cobrar nada e o Brasil não saca. Azar do Brasil”. Azarésimo. E azar o seu, se não ouvir.
Pega o disco, tá tudo lá. O Brasil negro, já na foto (linda de Flávio Colker (sobre concepção de Luiz Zerbini) na capa, no candomblé que passeia seus axés por Depois Que o Ilê Passar e Ia Omim Bum, ou em Eu Sou Neguinha? Tá lá o discurso político em Vamo Comer: “Quem vai equacionar as pressões/ do PT, da UDR/ e fazer dessa vergonha uma nação?” Tem o cinema falado de Giulietta Massina – “ah, minha vida sozinha/ ah, tela de uma outra luz” -, tem a solidão das estradas em Noite de Hotel: “Estou a zero, sempre o grande otário”. E aquela que deve ser uma das mais belas letras (e músicas) feitas nos últimos anos neste país, O Ciúme.
Numa tarde cheia de luz, no rio São Francisco, sobre toda a paisagem “paira, monstruosa, a
sombra do ciúme”. O humano torturado projeta sua imagem interior sobre a paisagem indiferente, alheia à dor individual. Mas de dentro dessa tortura, que nada alivia e ninguém pode perceber, é que o ser olha e suspeita: “Tudo é perda, tudo quer buscar – cadê?”
Porque tem luz e sombra. Uma engendra a outra, uma nasce de dentro da outra. Tem amor e ódio, tem encontro e perda, tem identificação e indiferença. Tem dias em que tudo se encaixa, como no momento das peças finais dos quebra-cabeças, e tem aqueles em que tudo se desencaixa numa aflição tonta de não haver sentido nem paz, amor, futuro ou coisa alguma. Tem dias que nenhum beijo mata a fome enorme de outra coisa que seria mais (e sempre menos) que um beijo. Mas tem aqueles outros, quando um vento súbito e simples entrando pela janela aberta do carro para bater nos teus cabelos parece melhor que o mais demorado e sincero dos beijos. Precisamos dos beijos, precisamos dos ventos. Tem dias de abençoar, dias de amaldiçoar. E cada um é tantos dentro do um só que vê e adjetiva o de fora que escapa, tão completamente só no seu jeito intransferível de ver: “E eu sou só eu só eu só eu”.
A voz e a poesia de Caetano passeiam nesse limiar – Limiar é tão bonito, parece limite, parece ar, um limite no ar? – entre os opostos. Umbigo do Brasil, como diz Maria Clara/ Cacaia. Cravado no centro, origem, raiz, verdade.
A voz e a poesia de Caetano passeiam nesse limiar – Limiar é tão bonito, parece limite, parece ar, um limite no ar? – entre os opostos. Umbigo do Brasil, como diz Maria Clara/ Cacaia. Cravado no centro, origem, raiz, verdade.
Vamo comer, vamo comer Caetano: bom apetite.
( Caio Fernando Abreu )
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